segunda-feira, 30 de maio de 2011

Cacos de Liberdade - André Guerra

Os olhos cruzaram-se pela segunda vez, agora era certo: cruzar-se-iam pela terceira, era inevitável. Enquanto o certo se mantinha incerto, ele aguardava. Acabara de pedir ao garçom que lhe trouxesse mais uma dose de seu uísque favorito. Já perdera a conta de quantas doses havia tomado sentado sozinho naquele mesmo bar, acompanhado dos mesmos pensamentos, fumando a mesma quantidade de cigarros, da mesma marca de sempre. Na realidade, já perdera a conta de quantas contas fizera sobre sua existência ao som de fundo daquele mesmo Jazz. Mas naquela noite havia algo de peculiar: naquela noite houve as duas breves companhias daquele par de olhos. Enquanto mexia lentamente com o dedo os gelos do seu uísque, sentia que algo girava dentro de sua mente. Por um segundo, chegou a sentir como se já não estivesse onde estava e que talvez já não fosse quem era. E quem era? Não sabia mais. Talvez nunca soubera. Talvez nunca soubera que não sabia. Seja lá o que for, o certo é que naquele momento, à medida que pensava, gradativamente tudo parecia deixar de fazer sentido. Repentinamente, percebeu-se desperto, como se voltasse a ser lúcido após um devaneio, como se bruscamente houvesse acordado de um pesadelo. Olhou lentamente ao redor e percebeu que, desde sua dose de uísque até o lugar isolado onde sempre escolhia sentar-se no bar de costume, eram hábitos, tradições, convenções, práticas herdadas do mundo, herdadas dos outros e, até mesmo, herdadas dele próprio, mas de um ele próprio que ele não conseguia mais reconhecer como sendo o que era ser ele. A sensação da ruptura foi tão lacerante que teve vontade de se olhar no espelho e descobrir se o seu rosto também traria traços que não mais lhe diziam respeito; se o brilho de seus olhos refletidos no espelho seria, ainda, o brilho de seus próprios olhos. Percebeu que parecia ter estado em um sono profundo, durante essas pouco mais de duas décadas de existência. Por onde andara? Quanto envelhecera? Quem deixara de ser? Quem é que havia deixado para trás nesse percurso sem notar? Queria descobrir a si próprio, queria esquecer definitivamente quem fora e passar a sentir quem era. Se o homem é a lembrança de si mesmo, quem era aquele na lembrança que ele tinha de si? Já não sabia mais quem era. Tudo era apenas uma confusa lembrança daquele que levantava todos os dias da mesma cama, com os mesmos lençois, com a mesma roupa velha de dormir; daquele que escovava os dentes da mesma forma, após o mesmo café da manhã, mas quem era? Quem era aquele que cumpria sempre o mesmo horário, com a mesma pressa, seguindo pelos mesmos caminhos, lutando pela mesma pontualidade exigida pelo mesmo emprego, exatamente igual a todos os outros, quem era? Embora curioso por se descobrir, sabia que olhos na mesa em frente poderiam pairar sobre os seus, pela terceira vez. Se ainda fosse a segunda, seria aceitável. Mais uma vez, olhou em volta, sempre desviando da mesa atraente. Tentando compreender o sentido do seu próprio existir, observou analiticamente a realidade das pessoas que lhe cercavam. Aqueles à sua volta não eram indivíduos, eram pequenos grupos. Grupos de dois, grupos de seis, grupos de três, grupos de um. Sim, grupos e mais grupos, pois todos, de certa forma, traziam distintivos, atributos físicos e subjetivos, explícitos ou implícitos, que demonstravam quem eram, de onde vinham e para onde pretendiam ir. Todos, sem exceção, sorriam quando e como se esperava que sorrissem; concentravam-se quando e como se esperava que se concentrassem; bebiam quando e como se esperava que bebessem; fumavam quando e como se esperava que fumassem. Não havia uma existência singular. Não conseguia nominar o que sentia, mas quanto mais observava, mais o desconforto lhe sufocava. Estava sentindo-se como se estivesse abafado dentro do próprio corpo, apertado pelos próprios limites, oprimido dentro da própria existência. Nada daquilo era real, tudo não passava de uma ilusão. Não havia sentido. Não havia verdade. Não havia realidade. Tudo era um filme. Tudo era nada. Ele era nada. Aquele bar era nada. Aquelas pessoas eram nada. Tudo era nada. Nada. Nada. Nada. Pensou que não sabia por que bebia. Pensou que não sabia por que fumava. Pensou que não sabia por que ali estava. Pensou, inclusive, que não sabia nem por que pensava. Sentiu como se estivesse perdido e procurasse ser encontrado, mas quem lhe encontraria? Quem poderia saber não estar perdido naquele caos? A vida fragmentou-se, escapou-lhe da mão como um copo que cai para se estilhaçar no chão. Tudo se tornou nonsense, sem início ou fim, apenas um perpétuo contínuo. A terceira vez. A terceira vez não é como a primeira que é sem querer, muito menos como a segunda que é por ousadia. A terceira vez é um desafio aceito. A terceira vez é mais demorada, mais profunda e silenciosa. Parece perpétua em cada segundo acabado. Na terceira vez, não é o observador que sente, mas sim ele que é sentido; o observador é que está sendo observado, que está sendo exposto e que se desnuda. Aqueles olhos lhe penetraram no âmago da alma como que em busca de algo fluido e inconsistente, de uma certeza incerta; olhos de fera farejando a presa acuada. Se nada fazia sentido, se não existia apenas um único sentido, então por que não inventar um, um sentido próprio, um sentido singular? Se durante tanto tempo ele havia sido sério na brincadeira que acreditava ser de verdade, agora brincaria sabendo que a verdade era uma ilusão. Pegou o copo de uísque intocado e aspirou o vapor da substância etílica. E aquele copo em sua mão, o que seria se ali não estivesse? Percebeu que era ele quem dava existência e sentido àquele objeto, àquele bar, àquelas pessoas, a ele mesmo e aos seus pensamentos. Um copo de uísque, na mesa de um bar, ao som de um Jazz, poderia ter inúmeros sentidos, inúmeras possibilidades de compreensão, mas qual desses sentidos era o sentido que ele dava ao copo de uísque, ao bar, ao som do Jazz? Será que ele dava o seu sentido, um sentido único, particular e singular, ou adotava um dos tantos que escorriam pelas ruas? Será que ele realmente sabia o que significava aquele copo, naquele bar, com aquele Jazz? No mesmo instante, ele estendeu seu braço sobre a mesa e deixou o copo suspenso no vazio. Olhava atentamente a última pedra de gelo em sua luta para manter a temperatura do líquido. Observava o gelo deixando, aos poucos, de ser o que era, sangrando lágrimas de água, para voltar a ser o que não era. Continuou observando. Aguardava até que o uísque dentro do copo estivesse novamente parado, aparentando ser sólido, estável, eterno. Esperou. Quando não havia mais movimento perceptível, de uma só vez libertou o copo. O copo de uísque. O copo e o uísque caíram juntos, dois corpos em um só, no mesmo movimento, com a mesma velocidade, inseparáveis, eternos. Quando atingiu o chão, o copo, o uísque, o copo de uísque estilhaçou-se. Tudo se tornou nonsense, sem início ou fim, apenas um perpétuo contínuo de fragmentos líquidos espalhando-se lenta e uniformemente pelo chão. Daquele momento, o que ficou foi a descoberta de um sentido, de uma verdade, de uma realidade. O uísque, espalhando-se pelo chão, em meio a cacos e farelos de cristal, libertava não só o líquido, prisioneiro da cela vítrea, mas também o copo da sua condição de prisão. A liberdade afastou a ilusão de o copo ser eternamente o destino do uísque, e de o uísque estar eternamente destinado a ser do copo. Juntos, copo e uísque seriam, para sempre, simplesmente um copo de uísque. Espalhados pelo chão, fundidos e fragmentados pelo acaso e pela sorte poderiam ser o que fossem, um sentido qualquer, para além do que a visão imediata poderia alcançar. Tanto sentido, tanta verdade, tanta realidade, tanta liberdade, mas quem saberia? Quem sentiria o que ele sentia? Com quem compartilharia? Com a cabeça escorada sobre o braço em cima da mesa, observava o uísque espalhar-se livremente pelo chão. Olhou mais uma vez ao redor, em busca de uma espécie de comunhão. Todos continuavam mecanicamente seguindo o pré-determinado, não podiam sentir, não sentiam que ali, na frente deles, aos seus pés, havia surgido um foco de liberdade. Em sua procura, distraiu-se, e do meio da multidão, do meio daquela massa amorfa, salientou-se o brilho atento de um par de olhos que observava fixamente o líquido libertário encontrar seu lugar no chão, seu lugar no mundo, seu lugar no existir. Sabendo que estava sendo observada, sem erguer os olhos, ela deixou brotar um sorriso no canto da boca. Ele não sabia explicar, mas tinha certeza de que ela o compreendia, que ela sentia a liberdade emanante daqueles cacos de uísque e das poças de vidro espalhadas pelo chão. Quando ela lentamente ergueu os olhos e lhe encarou, já não fazia sentido relutar. Ele levantou-se de sua cadeira e foi até a mesa dela. Sentou-se. Os olhos não deixaram de se refletir um no outro por um segundo sequer, nem tinham por quê. Ele olhava para ela, assim como ela olhava para ele. Ele não sabia o que dizer, tampouco o que gostaria de ouvir, se é que gostaria de dizer ou de ouvir. Assim ficaram, ambos em um silêncio áspero e ruidoso. Ele pensou em falar, mas não tinha motivo. Não sabia como, mas tinha certeza de que ela não lhe pedia palavras. Ele sentia que ela poderia abraçar os sentimentos que ele tinha nos olhos. Subitamente sentiu-se calmo. Serenou. Esperou. O perfume dela finalmente chegou até ele, talvez o dele também chegara até ela. Estavam em comunhão. Levantou-se, ela o seguiu. Também não sabia como, mas tinha certeza de que ela o seguiria. Entraram no carro. Ele deu a partida e arrancou. Enquanto seguiam, ela não fez menção de falar, tampouco de querer ficar quieta. Ela simplesmente estava como estava, sem pensamentos alheios ou palavras abafadas no som do silêncio. Chegaram na garagem do prédio dele. Estacionou. Ele não estava com pressa, mas também não sentia vontade de demorar. Desceu do carro e, como que involuntariamente, seu braço a abraçou. Caminharam até o elevador. Assim que a porta fechou, abraçaram-se. Um abraço forte, apertado, excitante e ao mesmo tempo terno. Os lábios dele encostaram suavemente no pescoço dela, tentando sorver a textura daquele perfume. O que ele queria era aproximar aqueles dois universos até serem um só. Chegaram no andar. Ele saiu, ela o seguiu. Entraram no apartamento. As luzes estavam apagadas, mas a lua estava exposta na sacada do último andar banhando o chão, as paredes e o teto com um brilho úmido de prata. Chegaram ao centro da sala. Num impulso, a boca dele falaria, quebraria o silêncio mútuo. Seria uma pergunta ou uma frase qualquer, simplesmente para ele ter certeza de que ainda era ele quem estava ali; ele queria ouvir sua própria voz, na ânsia de voltar à segurança de uma identidade estática, previsível, delimitada e sólida. Rápida, ela colocou sua mão delicadamente sobre os lábios dele. Palavras ou frases nada mais fariam do que reproduzir o já dito, o já falado, o já pensado, senão por eles, por tantos outros. Palavras imporiam sentidos, restringiriam possibilidades, anulariam alternativas, mortificariam a liberdade. Não precisavam mais falar, não precisavam mais pensar; poderiam apenas sentir o que estava por trás das regras, das normas, das convenções, das palavras e dos pensamentos. Quem seriam eles além daquilo que expressavam ser? Ele não queria mais ouvi-la, muito menos fazer-se ouvir, queria apenas senti-la e fazer-se sentir. Em um instante, cada centímetro do corpo dela fez-se singular; um infinito de possibilidades inomináveis, não quantificáveis e incompreensíveis pela racionalidade mecânica e fascista dos sentidos doutrinados. Ele queria subverter os prazeres e corromper o corpo e a alma daquela mulher. Queria ver as fragrâncias e aspirar os sabores daquele corpo que sensualmente se despia dos ritos e dos rituais que lhe mantinham prisioneiro de si mesmo. À medida que derivava pelas curvas e declives daquele oceano, gradualmente mais revolto, podia ouvir a temperatura que se elevava e saborear a imagem do regozijo de um prazer luxurioso. A textura do orgasmo jamais poderia ser compartilhada, não há comunicação, mas, ambos, cada um isolado em sua própria existência, levariam, eternamente enquanto durasse, o sentimento, a realidade, a verdade e aquela liberdade singular de um copo de uísque estilhaçado espalhando-se pelo chão.

Nenhum comentário: